A cultura popular e o risível no Evangelho de Marcos

O cristianismo oficial tem certa dificuldade em reconhecer suas origens como uma religiosidade profundamente popular. Pouco se admite que os aparatos que moldaram seus textos e cânones sagrados são, em essência, frutos da cultura popular. Ainda mais desafiador é aceitar que essa cultura formadora não separa a criação narrativa entreséria ecômica. Tudo é poiesis, tudo é criação. A literatura e a crítica secular já perceberam esse traço na produção não religiosa. Em Édipo Rei, é impossível ignorar o escárnio e a ironia em Tirésias, o cego que vê mais do que o rei. Macbeth esconde um riso nas figuras grotescas de suas bruxas. Até Romeu e Julieta transforma Frei Lourenço em um personagem, ao mesmo tempo, patético e cômico. Surge, então, a pergunta: por que até as tragédias clássicas carregam traços do risível, mas o texto bíblico, especialmente o Evangelho de Marcos, parece não os ter? Este livro busca responder a essa questão. O Evangelho de Marcos, como produto da cultura popular, pode e deve ser lido em sua essência narrativa, e, como toda criação das classes subalternas, também está repleto de ironias, escárnio e comicidade, à espera de serem revelados. O que parecia ser o mais simples dos evangelhos revela-se, nesta obra, uma narrativa de impressionante complexidade literária. Por meio de uma abordagem que combina crítica literária e análise teatral, este estudo apresenta Jesus como uma figura profundamente humana, simultaneamente trágica e irônica, que envolve o leitor em uma narrativa cheia de nuances e dramaticidade. Ao situar o texto no contexto da cultura popular do cristianismo nascente, a obra desvenda a potência narrativa do Evangelho de Marcos, onde cada gesto e diálogo constroem cenas de intensidade singular. A análise procura avançar ainda mais ao explorar uma questão provocadora: como elementos do riso e da ironia podem coexistir com o sagrado em um texto canônico? Resultado de anos de pesquisa, este livro oferece uma nova forma de leitura para o texto