Abismo é como atravessar um corredor de espelhos: em cada reflexo, algo de nós retorna, ampliado, distorcido, mais verdadeiro do que gostaríamos de admitir. As narrativas aqui reunidas não obedecem à lógica linear da vida cotidiana; elas se movem entre lembranças, sonhos, delírios, burocracias e afetos, costurando uma tapeçaria em que o banal se revela extraordinário e o absurdo, surpreendentemente íntimo. O texto é habitado por vozes múltiplas — ora a menina que repete “tenho certeza” diante de uma verdade incômoda, ora a mulher que descobre que o tempo é um quarto de memórias, ora a narradora que transforma uma cena doméstica em rito quase místico. Essas vozes não apenas contam histórias: elas tensionam a própria linguagem, borrando fronteiras entre diário, processo, poesia e crônica. Este é o primeiro livro de Paula Nogueira, e há nele a força de toda estreia verdadeira: a coragem de inaugurar um espaço próprio na literatura, sem concessões, deixando que a escrita encontre seus caminhos mais singulares. Cada página anuncia uma voz que, embora recém-chegada em forma de livro, já soa madura, ousada e necessária. Aqui, o leitor é chamado a caminhar entre passagens secretas. Há humor e estranhamento, há crítica e ternura. A cada trecho, o texto nos lembra que a literatura não é apenas invenção, mas também um gesto de ver: ver além do óbvio, ver o que escapa na pressa do dia, ver aquilo que a memória insiste em conservar. É nesse espaço liminar — entre o real e o devaneio, entre a vida prática e a imaginação — que o livro se inscreve. Como em um rito de iniciação, não cabe explicar: cabe aceitar o convite, atravessar a porta, deixar que a leitura nos desestabilize e, quem sabe, nos devolva mais atentos ao mistério da existência. Convido, pois, a que você abra este livro como quem gira lentamente uma fechadura: sem pressa, com curiosidade, permitindo-se surpreender pelo que se revela do outro lado. Porque, como aprenderemos logo, cada instante contém um abismo — e cada palavra, um espelho.